30 Janeiro 2023
"Para entender melhor a identidade homossexual, há na Igreja Católica a lenta elaboração de uma série de distinções entre orientação ou tendência homossexual, assunção pessoal da orientação e realização do ato sexual. O entendimento em termos de pecado oficialmente não diz respeito à orientação, mas sim à sua assunção e certamente à realização do ato. A livre escolha é identificada na ausência de resistência ao ato homossexual, que a continência prescreveria", escreve o teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em artigo publicado no site Come se non, 27-01-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
As declarações do Papa Francisco sobre a homossexualidade de que "não é crime" suscitaram uma série de reações de justo interesse, mas muitas vezes baseadas em algumas confusões que fazem parte da cultura contemporânea e que merecem um pouco de atenção.
Aqui está o texto completo do trecho sobre o tema da entrevista à Associated Press. Embora retirado de um texto ainda mais amplo (ao qual remeto aqui), já é suficiente para entender mais corretamente a intenção da declaração, tendo em vista que a pergunta a que Francisco responde diz respeito à "criminalização dos homossexuais" e ao apoio de alguns os bispos a leis penais contra a homossexualidade, às vezes punida com a pena de morte:
“A condenação da homossexualidade chega de muito longe. Hoje acredito que os países que têm condenações legais são mais de cinquenta. E destes acredito que cerca de dez tenham a pena de morte. Não a nomeiam diretamente, mas dizem “aqueles que têm comportamentos inaturais". Tentam dizer isso de uma forma encoberta. Mas há países ou pelo menos culturas que têm essa forte tendência. Penso que é injusto. Aqui em audiência recebo grupos de pessoas assim. Somos todos filhos de Deus e Deus nos ama como somos e pela força que cada um de nós tem de lutar por sua dignidade. Ser homossexuais não é crime. ‘Sim, mas é um pecado’. Primeiro, vamos distinguir entre pecado e crime. Mas a falta de caridade para com o próximo também é pecado, e aí? Todo homem e toda mulher precisa ter uma janela em sua vida para a qual direcionar sua esperança e poder receber a dignidade de Deus. E ser homossexuais não é um crime, é uma condição humana”.
Para entender melhor essas declarações, é necessário especificar, primeiro, que o mundo moderno tardio, resultante das revoluções do final do século XVIII, introduziu uma distinção valiosa. Ou seja, aquela entre o "crime" do ponto de vista criminal e o "pecado" do ponto de vista moral e religioso. A distinção não é necessariamente uma oposição nem uma contradição: salvaguarda e produz duas ordens diferentes e irredutíveis de experiência. A isso devemos acrescentar também uma terceira categoria, aquela do "ilícito", que se distingue tanto do crime como do pecado.
O que é crime do ponto de vista penal é sempre um ilícito do ponto de vista do sistema jurídico, mas pode não ser um pecado e até ser uma virtude. Vamos pensar em uma lei penal que estabeleça o crime de "estudo universitário" para as mulheres. Certamente, o ordenamento jurídico considera ilícita até mesmo a tentativa de matricular uma mulher na universidade. Mas do ponto de vista moral e religioso, poderá até ser uma virtude garantir o estudo "clandestino" para as mulheres.
Da mesma forma, é muito possível que aquilo que a tradição moral e religiosa considera pecado (por ex., o adultério) possa ter sido considerado crime (como era na Itália até 1968) e continue a ser considerado um "ilícito" (que por ex. leva àseparação). Obviamente, entre direito penal, direito civil e administrativo, moral e religião existem muitas formas de influência recíproca. Por exemplo, na Alemanha ainda hoje a "fornicação" (Unzucht) tem uma relevância penal, enquanto na Itália não é assim. As histórias das relações entre crime, ilícito e pecado estão ligadas às histórias das culturas, línguas e povos.
E há evoluções de cada um dos três termos: há crimes antigos que são "descriminalizados" (por exemplo, o adultério) e novos crimes que "surgem" (como homicídio de trânsito). Isso também acontece nas tradições religiosas: há ações que eram não pecado (como a guerra ou a pena de morte) e que, devido à evolução da consciência da fé e da cultura, tornam-se pecado.
Se considerarmos a questão específica da “homossexualidade”, as palavras do Papa Francisco me parecem soar sobretudo em defesa da possibilidade garantida ao ordenamento jurídico de não traduzir em crime todo pecado. Isso seria o sinal de uma falta de laicidade, que consiste precisamente em garantir sempre uma certa elasticidade e distinção entre o comportamento público, aquele comunitário e aquele privados. Isso, no entanto, levanta uma grande questão.
Se em nível público e privado podemos apreciar um certo acolhimento da identidade e do comportamento homossexual, o que podemos dizer e fazer no plano eclesial? Basta-nos permanecer fiéis à clássica identificação da homossexualidade com um "vício da castidade", sem, no entanto, pretender que essa leitura seja válida nem no plano público nem naquele privado? Ou podemos corrigir aquela orientação clássica simplesmente com a adição de um "estilo de caridade"?
Para entender melhor a identidade homossexual, há na Igreja Católica a lenta elaboração de uma série de distinções entre orientação ou tendência homossexual, assunção pessoal da orientação e realização do ato sexual. O entendimento em termos de pecado oficialmente não diz respeito à orientação, mas sim à sua assunção e certamente à realização do ato. A livre escolha é identificada na ausência de resistência ao ato homossexual, que a continência prescreveria.
Aqui está o núcleo da resposta que encontramos nos documentos mais recentes e no Catecismo da Igreja Católica. É evidente que se trata ainda de uma elaboração um tanto tosca, porque especifica o respeito pela pessoa homossexual, mas condiciona o respeito à escolha da continência.
Aqui surge uma cisão entre a pessoa e seus comportamentos que tende a pensar a homossexualidade como vício ou patologia, não como identidade. Se a identidade homossexual não é uma identidade viciosa ou doentia, não pode ser dissociada dos comportamentos que a integram. A admissão de que se trata de uma “condição humana” parece-me a maior abertura, mas que exige uma grande reelaboração do saber tradicional.
De fato, essa leitura "em andamento" se baseia em uma compreensão demasiado drástica da alteridade e da fertilidade, que se refere apenas ao par homem-mulher. Isso tende a excluir que haja verdadeira alteridade entre duas pessoas do mesmo sexo e que possa haver fecundidade entre elas. A autoridade da natureza é assumida de forma imediata e quase identificada com a vontade de Deus.
Pensar a alteridade e a fecundidade mesmo entre pessoas do mesmo sexo, superando a visão da homossexualidade como “autocomplacência infecunda” seria o caminho a percorrer. Mas aqui deve-se reconhecer que os pronunciamentos oficiais entre o final do último milênio e o início do novo milênio introduziram "definições" que condicionam fortemente a evolução interna da consciência eclesial e da sensibilidade. Para poder intervir com autoridade sobre as práticas eclesiais seriam necessárias duas etapas diferentes.
Primeiro se precisa de uma nova Instrução da Congregação para a Doutrina da Fé, propondo uma leitura diferente do fenômeno homossexual, com base numa compreensão mais ampla da sexualidade. Essa seria a premissa para uma modificação também dos números do Catecismo. Talvez seria muito útil uma colocação diferente do tema dentro do CIC também. Agora ela aparece em uma sequência bastante constrangedora. A sequência das "ofensas contra a castidade" é de fato esta: luxúria, masturbação, fornicação, pornografia, prostituição, estupro e, finalmente, embora em um parágrafo diferente, a homossexualidade.
Maniferstação da Comunidade LGBT+ (Foto: Ted Eytan | Creative Commons)
Para essa evolução, como é claro, nem sempre se pode pedir ao papa que faça o papel de "lebre". O que Francisco disse sobre o Bispo também se aplica ao Bispo de Roma: às vezes tem que estar na frente de todos, mais frequentemente no centro, às vezes atrás, com os mais lentos. Cabe principalmente aos teólogos e aos católicos competentes oferecer novos esquemas para entender a homossexualidade de maneira mais respeitosa. Só assim será possível um real acolhimento daqueles que vivem abertamente a sua identidade homossexual. Isso implica uma elaboração nada fácil da relação entre as estruturas eclesiais e as estruturas sociais. Sobretudo se a estrutura social, ou seja, o reconhecimento público dos direitos e deveres dos indivíduos, tomou novos rumos e protege bens que não são considerados como tais pela comunidade eclesial.
E, no entanto, uma leitura crente e moral do mundo não é incompatível com o crescimento da tolerância e do respeito. Mas a "liberdade de consciência" é um bem oficialmente reconhecido na Igreja Católica somente a partir de 1965. Esse fato não deve ser esquecido e também condiciona fortemente a maneira como "pedimos ao papa soberano" que organize uma nova estrutura. Desenvolver uma cultura do acolhimento e do respeito requer não apenas “atos de autoridade”, mas de teólogos que tenham a audácia de pensar em grande a identidade sexual de todos.
Sobre isso, na Itália, não faltam vozes de grande interesse, como aquelas de Basilio Petrà e de Aristide Fumagalli, que há pelo menos uma década trabalham cuidadosamente sobre o tema, libertando a razão crente de diversos preconceitos. A evolução da doutrina católica, com toda a devida articulação, é a única forma de permanecer fieis à tradição e de “fazer cultura” no contexto do mundo contemporâneo. Distinguir entre pecado, crime e condição humana, como saber elaborar não só "estilos de caridade", mas também "percursos de justiça" e "categorias de respeito", faz parte daquelas tarefas complexas que a Igreja jamais pode delegar integralmente ao seu passado.
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Crime, pecado e condição humana: as palavras do Papa Francisco sobre homossexualidade - Instituto Humanitas Unisinos - IHU